Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

"O convento de Mafra está habitado pelo espírito de Saramago" via DN por João Céu e Silva (02/01/2017)

"O convento de Mafra está habitado pelo espírito de Saramago"
via DN por João Céu e Silva (02/01/2017)

Pode ser consultada e recuperada aqui
em https://www.dn.pt/artes/interior/o-convento-de-mafra-esta-habitado-pelo-espirito-de-saramago-5581060.html

"Pilar del Rio junto ao Convento de Mafra" - Gustavo Bom/Global Imagens

"Pilar del Rio foi a Mafra com o DN e recorda a construção do romance Memorial do Convento a partir das histórias que o escritor lhe contou

Maria Madalena Bárbara Xavier Leonor Teresa Antónia Josefa foi razão pela qual em Mafra se erigiu um convento de dimensões tão exageradas que só a megalomania do rei D. João V, o falso voto de pobreza dos Franciscanos, a ausência de sucessão dinástica nacional e o ouro vindo do Brasil justificaram.

Mafra não ficava assim tão distante da capital do reino: 25 quilómetros. Mas o edifício que ali se iria fazer crescer era uma coisa nunca vista. Que começa por ser pequeno, apenas para 13 frades franciscanos, número que foi engordando para 40 frades, depois 80 e fechou-se o negócio entre a Ordem e o monarca com lugar para 330 hóspedes religiosos.

Os ecos das vozes de quem construiu o convento mantém-se nas compridas alas, salas, capelas e inúmeras divisões desde que há trezentos anos foi posta a primeira pedra no local, no dia 17 de novembro de 1717. Nos treze anos seguintes, 52 mil trabalhadores fizeram as fundações, subiram os pilares e cobriram a imensa área com tetos de todos os géneros, estando a basílica pronta para ser consagrada no dia do 41º aniversário de D. João V e com festa rija durante toda a semana seguinte.

Apesar de tão desejada, a herdeira do reino, Maria Madalena Bárbara Xavier Leonor Teresa Antónia Josefa nunca conheceu a magnífica obra de Mafra. Casou com o futuro rei espanhol, D. Fernando VI, levando consigo o músico italiano Domenico Scarlatti, que fora contratado para educar a princesa.

Quem for ao Convento de Mafra hoje em dia também não deixará de ouvir esses ecos que replicam tudo o que se passou desde então entre aquelas paredes três vezes centenárias porque o edifício foi tendo várias vidas além da dos franciscanos, sendo a última a presença etérea e constante provocada pelas personagens do romance de José Saramago, o Memorial do Convento. E esses ecos que vêm de uma sala ao fim de seis lances de escadas tornam-se cada vez mais reais conforme o visitante se aproxima do antigo solário onde os frades se banhavam ao sol, porque ali está a decorrer uma representação teatral que condensa esta obra do Prémio Nobel da Literatura.

Gustavo Bom/Global Imagens

Algumas dezenas de jovens - os que hoje dominam a plateia - escutam atentos a dramatização do Memorial do Convento e absorvem as grandes linhas históricas dos acontecimentos. Há olhares de cumplicidade entre uns e outros quando se escutam as falas dos dois camareiros que recordam as dificuldades da rainha em engravidar, uma deixas brejeiras qb; surpreendem-se quando veem a passarola do padre Bartolomeu de Gusmão voar, e apreendem os mistérios de uma das principais personagens femininas inventadas por Saramago: Blimunda.

Estampa antiga onde se pode ver o Palácio Nacional de Mafra há mais de um século

Também percebem que o escritor não descreve a princesa como nos contos de fadas, pois esta tem cara de lua cheia e é bexigosa.

Nem o rei sai bem desta ficção em que o autor pretende mostrar o estatuto da aristocracia e do alto clero em contraponto ao do povo e dos oprimidos. Os alunos identificam-se com a peça e saem do Convento com outra opinião sobre o romance. Diogo gostou, principalmente porque o está a ler e compreendeu melhor a narrativa; Raquel ficou "com vontade de ler o livro". A responsável por estas representações, Filomena Real, já tinha avisado desta boa receção por parte das escolas que vêm de autocarro desde Bragança, por exemplo, para as duas sessões diárias: "Há dez anos que fazemos as representações e eles gostam, tal como os adultos que visitam o Convento."

Estas representações do grupo teatral Éter não acontecem apenas no Convento de Mafra, também as há na Fundação José Saramago, um local onde os atores da companhia ficam mesmo entre os visitantes da Casa dos Bicos.

Um gancho em vez da mão

Entre os personagens de o Memorial do Convento está Baltazar Sete-Sóis, que surge com a mão esquerda escondida por "um gancho de ferro que lhe havia de fazer as vezes da mão". É como Saramago o descreve ainda não vai à página 50, sendo que uma dúzia de páginas à frente surge Blimunda, aquela que de manhã é obrigada "a comer pão, de olhos fechados" para não ver o que se passa no interior de Baltazar.

No ano em que se cumprem 35 anos do lançamento do romance, Pilar del Río, a viúva de José Saramago, recorda a sensação que teve ao confrontar-se com a sua leitura: "Foi o primeiro que li dele e achei muito curioso que se intitulasse Memorial do Convento. Li a primeira página numa livraria, onde estava com quatro amigas. Gostei logo tanto que comprei quatro exemplares para lhes oferecer. Depois de acabar de ler, voltei à livraria e pedi todos os outros livros do autor. Todos, era apenas O Ano da Morte de Ricardo Reis. Quando terminei de o ler o segundo, senti-me obrigada a vir a Lisboa por causa do meu deslumbramento perante o Memorial."

O que contribuiu para esse deslumbramento, pergunta-se a Pilar del Río: "O que me impressionou foi o facto de ser uma leitura tão moderna e contemporânea da História e do comportamento dos homens e das mulheres." Lembra-se de que enquanto o ia lendo parava a cada duas páginas: "Queria convencer-me de que estava a ler um autor contemporâneo. Nunca tinha ouvido falar de Saramago, não sabia quem ele era! Mas dizia para mim: isto está escrito num registo que é clássico, sublime, no entanto, é de um autor contemporâneo. Ia lendo e dizia: não, ele não é deste tempo, isto é uma leitura progressista e contemporânea da História. Por isso, li este livro num estado de exaltação."

Foi então que pediu para se encontrar com o autor: "Queria agradecer-lhe ter escrito o livro. Perguntei se podíamos tomar um café, disse-lhe que era jornalista mas vinha sem intenção de o entrevistar. Sabia de antemão que logo que o conhecesse iria querer escrever sobre ele, mas dessa vez nem gravador trouxe. O interesse era ter a perceção direta de como era o autor."

Para Pilar del Río este não é o livro mais político de José Saramago. "Livros políticos não lhe faltam", diz, e dá exemplos: Ensaio sobre a Cegueira, Caim, Evangelho segundo Jesus Cristo... "Os livros são todos políticos, este é um livro de uma beleza extraordinária, sobre o qual Saramago disse depois que estava a descrever a estátua, tal como no Evangelho, mas a partir do Ensaio sobre a Cegueira sentiu que já não queria descrever a estátua mas a pedra da qual é feita", explica.

Quanto à grande presença da religião em o Memorial, refere: "Está sempre presente na obra de Saramago, porque também o está em todos os seres humanos - sejam ou não crentes. Também existe em Levantado do Chão ou em Intermitências da Morte, quando a Igreja não quer que as pessoas sejam eternas para não deixar de ter sentido."

A história da escrita do Memorial do Convento começa com uma visita a Mafra do escritor, onde confessa aos amigos que o acompanhavam [entre eles a anterior mulher do autor, Isabel da Nóbrega] que "gostaria de meter o Convento num livro". Será que o conseguiu, questiona-se: "E de que maneira! Mas foram os amigos, sempre muito insistentes, que o lembravam da promessa e lhe perguntavam: "Então, já meteste o Convento de Mafra num romance?" Saramago sentiu-se pressionado a escrever e ainda bem, porque o livro tem uma grande beleza."

Será que o convento é olhado de um outro modo após a publicação do romance em 1982? Pilar del Río é muito direta na resposta: "Ainda há dias vim cá com vários amigos espanhóis que não o conheciam e eles ficaram fascinados com a "presença" das personagens do romance que andavam pelo edifício, a Blimunda, Bartolomeu... Não há dúvida, este convento está habitado pelo espírito de Saramago."

Essas personagens não surgiram por acaso, como explica: "A música de Scarlati está no romance porque fazia parte da vida de Saramago." Recorda a leitura de um caderno de notas do escritor em que percebe a evolução das personagens: "Elas vão entrando no livro e Saramago, que queria colocar a contradição entre os nobres e o povo, vai notando a imposição de Blimunda. Porque ela não nasce com essas capacidades que vem a ter na narrativa. Tanto Blimunda como a Mulher do Médico [do Ensaio sobre a Cegueira] são duas grandes personagens femininas, que têm muito de parecido, que vão crescendo com a obra mas não faziam parte do projeto inicial naquela dimensão."

Após a enumeração de vários títulos do escritor, pergunta-se qual é o romance de Saramago de que mais gosta? "Tem dias, Cada dia gosto mais de um livro do que doutro e depende do estado de alma. Tendo muito a ir ao Evangelho, porque é um livro que tem reflexões muito sérias e que acompanha as pessoas que possam sentir determinadas ausências", diz. Depois de relidos há os que ficam lidos para sempre? "Não, leio-os por prazer e por obrigação. Acabei de ler a Jangada de Pedra por causa da montagem de uma peça no México. Li recentemente as Intermitências." E quando os relê compreende o livro de outra forma? "Sim, principalmente aqueles a que eu não assisti enquanto Saramago os escrevia. Quando leio aqueles a que acompanhei o processo de escrita, distraio-me a pensar nos acontecimentos desses dias: se tínhamos uma visita, se cozinhei certa coisa. Por isso, nesses primeiros livros, não tenho a distração de outros pensamentos, é só o livro."

No que respeita ao Memorial, Pilar del Río não deixa de recordar "os passeios a sós ou acompanhados por todas estas salas do convento. Ele não precisou de muitas horas a fazer consultas na biblioteca, mas tomava notas sobre como se vestiam as pessoas na época ou o que comiam. Coisas que poderiam ou não entrar no livro; e muitas outras que não precisava de saber. Também passeava por aqui para se aperceber da temperatura, se era frio ou quente, detalhes que não entravam no livro, mas de que precisava de se impregnar. Explicou-me onde vivia a família de Sete-Sóis, onde decorriam os trabalhos, o caminho por onde veio a pedra desde Pero Pinheiro." Terá sido o livro que exigiu mais investigação? Não, diz: "Os romances de Saramago exigiram sempre muita investigação."

Atuações populares

Quando os ecos da representação da peça terminam, o silêncio regressa ao convento de Mafra. Mas, em muitos locais do mundo, há atores a representar José Saramago. Segundo Pilar del Río, "neste momento A Barraca interpreta Ricardo Reis, no ano passado foi Claraboia; a Viagem do Elefante, a Ilha Desconhecida e o Memorial estão a ser representados quase todos os dias da semana. No dia 12 vai estrear o Homem Duplicado em Madrid, o Ensaio sobre a Cegueira está em Itália, nos EUA estão duas óperas e no México a Jangada de Pedra."

Cá fora do convento, há quem não tenha sido atriz na peça de Saramago, mas personagem em representações comemorativas deste património. É o caso de Clara Reis (1933) que já fez de ama da princesa e até trouxe a neta para ser uma das crianças: "Já trabalhei em várias recriações históricas, com fatos de época e perante muito público. Guardo com muito carinho as fotografias desses momentos."

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