Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 29 de abril de 2015

A pedra, seu interior e o caminho da descoberta ou lucidez... em Raul Brandão e José Saramago

(...) "A pedra depois de talhada é uma expressão. Entro na catedral. Silêncio e um cheirinho a floresta apodrecida. As lajes estão gastas de um lado pelos passos dos vivos, do outro pelo contacto dos mortos. Tudo aqui gira em torno da mesma ideia. A pedra esboroa-se, mas eu contemplo-a viva, com um povo de estátuas em cima, com um povo de mortos em baixo. Nos alicerces uma geração, outra geração, todos apodrecendo juntos na mesma terra misturada e revolvida. A parte exterior é maravilhosa, a parte subterrânea e mais maravilhosa ainda. É a única raiz que a conserva intacta." (...)
em "Húmus" de Raul Brandão, publicado em 1917

Existe aqui um paralelo, na interpretação e busca da lucidez. A "pedra", como elemento exterior, material e matéria, mas também, o que protege o "interior".

(...) "Com este livro terminou a estátua. A partir de "O Evangelho segundo Jesus Cristo", e isto sei-o agora que o tempo passou, começou outro período da minha vida de escritor, no qual desenvolvi novos trabalhos com novos horizontes literários, dispondo portanto de elementos de juízo suficientes para afirmar com plena convicção que houve uma mudança importante no meu ofício de escrever. Não falo da qualidade, falo de perspectiva. É como se desde o "Manual de Pintura e Caligrafia" até a "O Evangelho segundo Jesus Cristo", durante catorze anos, me tivesse dedicado a descrever uma estátua. O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra, o resultado de tirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura, é descrever o exterior da pedra, e essa descrição, metaforicamente, é o que encontramos nos romances a que me referi até agora. Quando terminei "O Evangelho" ainda não sabia que até então tinha andado a descrever estátuas. Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com "Ensaio sobre a Cegueira". Percebi, então, que alguma coisa tinha terminado na minha vida de escritor e que algo diferente estava a começar." (...)
em "A estátua e a pedra" de José Saramago
Fundação José Saramago, 2013
Páginas 33 e 34

"Leituras para o Verão" Post com sugestões de leitura no blog/livro (10/09/2009)

(do meu espólio, três obras mencionadas)

Pode ser consultado e lido, aqui
em http://caderno.josesaramago.org/51374.html

"Leituras para o Verão"
"Com os primeiros calores, já se sabe, é fatal como o destino, jornais e revistas, e uma vez por outra alguma televisão de gostos excêntricos, vêm perguntar ao autor destas linhas que livros recomendaria ele para ler no Verão. Tenho-me furtado sempre a responder, porquanto considero a leitura actividade suficientemente importante para dever ocupar-nos durante todo o ano, este em que estamos e todos os que vierem. Um dia, perante a insistência de um jornalista teimoso que não me largava a porta, resolvi ladear a questão de uma vez por todas, definindo o que então chamei a minha “família de espírito”, na qual, escusado será dizer, faria figura de último dos primos. Não foi uma simples lista de nomes, cada um deles levava a sua pequena justificação para que melhor se entendesse a escolha dos parentes. Incluí nos Cadernos de Lanzarote a imagem final da “árvore genealógica” que me tinha atrevido a esboçar e repito-a aqui para ilustração dos curiosos. Em primeiro lugar vinha Camões porque, como escrevi em O Ano da Morte de Ricardo Reis, todos os caminhos portugueses a ele vão dar. Seguiam-se depois o Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando a escreveu esse jesuíta, Cervantes, porque sem o autor do Quixote a Península Ibérica seria uma casa sem telhado, Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era, Voltaire, porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu ao desgosto, Raul Brandão, porque não é necessário ser um génio para escrever um livro genial, o Húmus, Fernando Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se chega a Portugal (já tínhamos Camões, mas ainda nos faltava um Pessoa), Kafka, porque demonstrou que o homem é um coleóptero, Eça de Queiroz, porque ensinou a ironia aos portugueses, Jorge Luis Borges, porque inventou a literatura virtual, e, finalmente, Gogol, porque contemplou a vida humana e achou-a triste.Que tal? Permitam-me agora os leitores uma sugestão. Organizem também a sua lista, definam a “família de espírito” literária a que mais se sentem ligados. Será uma boa ocupação para uma tarde na praia ou no campo. Ou em casa, se o dinheiro não deu para férias este ano." 
(10 de Julho de 2009)