Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Texto de Gerana Damulakis - "Saramago, sempre Saramago" (1997)

(Fotografia de José Saramago aclamado de pé, pelos seus leitores)


Texto de Gerana Damulakis
Pode ser encontrado e consultado, aqui
em http://www.jornaldepoesia.jor.br/1gerana3c.html

"Saramago, sempre Saramago"

"Quem já leu os romances de José Saramago está acostumado com a alta qualidade literária de livros como Memorial do convento, O evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira; daí que esse leitor pode pegar as crônicas do mesmo autor, pensando, claro!, em encontrar textos de muito boa qualidade também, mas sendo crônicas, pode ser que espere desde logo aquele “desleixo” — digamos assim — inerente à pressa com que se escreve o gênero dito menor da literatura. Ledo engano, vã espera. Saramago é sempre Saramago, seja qual o gênero que escreva. Não se lhe nota queda de qualidade, não se lhe aponta um texto aquém dele mesmo.
Mestre no relato de curto fôlego, José Saramago expressa-se com concisão nas suas crônicas, mantendo, durante todo o tempo da leitura, o interesse, como se estivesse conversando com os leitores de jornais. A crônica é uma prosa, nos dois sentidos; no sentido de gênero e no sentido de quem conversa —e aqui estamos diante, então, daquela faceta da crônica que fez o nosso Adroaldo Ribeiro Costa, cronista por 25 anos diariamente no jornal A Tarde, de Salvador, Bahia, intitular sua reunião de crônicas como Conversa de Esquina.
A ironia, um dos tropos da retórica, vê-se presente, como de resto em todo aficionado do gênero, para olhar o mundo de forma a redimir todos os leitores. Afinal, “crônicas, que são? Pretextos ou testemunhas?”, pergunta-nos Saramago. A resposta pode ser o que cada um espera que seja: o lugar onde o escritor pode falar por nós, quando usa um timbre que reivindica; o espaço da perplexidade ou da constatação; o momento de reflexão filosófica ao alcance de todos ou, enfim, um exemplo de uma tomada poética tirado agora, oportunamente, da coletânea de textos publicados no diário A Capital (1969) e no semanário Jornal do Fundão (1971-72), intitulado A Bagagem do Viajante ( Companhia das Letras, São Paulo,1996, 205 pp.):
Por causa de tudo isto me veio uma grande vontade de chorar. Ninguém me via, e eu via o mundo todo. Foi então que jurei a mim mesmo não morrer nunca.
Portanto, parece ser simples preconceito o rótulo de gênero menor; o que há é o escritor menor ou o escritor maior diante de determinados gêneros. Assim, o que coloco aqui é a capacidade de Saramago frente à crônica, sem queda, repito, da qualidade literária que lhe é freqüente no romance.
Outro ponto a considerar diz respeito a nacionalidade desse texto que nós — incluo-me no que hoje vejo como um julgamento apressado — estamos acostumados a rotular como “um gênero brasileiro”, quando mais não fosse, “carioca”, o que é mais localista ainda. Cabe refletir: mas se se acha a crônica nos jornais do mundo inteiro, se existem esses espaços para que os jornalistas desenvolvam um texto parecido com a nossa crônica, como considerá-la apenas nossa? O que difere o texto jornalístico das colunas de opinião dos periódicos mundo afora em relação aos nossos textos, talvez seja o humor sempre presente na crônica brasileira; e é com este argumento que vem a aquisição da crônica para a cultura nacional.
Em outros países, essas pessoas que ocupam esse tipo de espaço no jornal são chamados de colunistas, o que, entre nós, não tem o mesmo sentido de cronista. Inserindo a tomada de posição acima na avaliação dos textos de Saramago, motivo do enfoque, constatamos que o escritor português faz crônica no estilo brasileiro. Por outra, não poderíamos olhar a questão sem xenofobia, e avaliar com mais profundidade a colocação e concluir que, independente da nacionalidade, a crônica adquire esse jeito de ser quando escrita por pessoas que a ela se moldam com facilidade, tal como se para escrevê-la tivessem determinado quociente de sensibilidade?
Com o jeito de ser da crônica, José Saramago registra a vida contemporânea, olhando o mundo ao redor para fazer uma primeira leitura, e, deitando no papel o texto para a segunda leitura do mundo. A observação atual pode levá-lo à uma lembrança de infância, ao estarrecimento ou à notificação apenas de um ocorrido que , se agora é irrelevante, depois pode ter importância dentro da recriação de uma época.
E, a propósito de um outro ponto levantado aqui, sobre a crônica ser uma conversa, sabe-se que conversar é uma arte, haja vista Sherazade. Imagine, então, quando tudo é um monólogo, quando a resposta pertence a um interlocutor que você não escuta, não vê, não conhece. Manter a conversa dentro dessas condições é como falar sozinho, contudo, espera-se que ocorra o eco. E isso se dá, seja nos comentários da turma reunida, seja através de uma manifestação do leitor explícita em carta ou, quando possível, por telefone, ou, quem sabe, ao encontrar o cronista na esquina. Afinal, estamos mesmo tratando de uma “conversa de esquina”.
Analisando esse gênero, para o qual ando me debruçando com especial interesse, notei que não escapa aos cronistas em geral o tom de confissão. Por tal veio, intitulei um capítulo de um pretenso livro da seguinte maneira: Hoje estou triste! Saramago não foge à regra, e, na crônica “Natalmente crónica”, acaba confessando-se:
Acontece porém que tenho fortes razões para não estar de bons humores, o que me permite esquivar-me desta vez, se alguma outra caí em tão ingénua fraqueza, ao jogo cúmplice do amplexo universal... Mas o leitor também lá tem a sua vida, quem sabe se dura e difícil, e não há-de aceitar que eu lhe agrave as amarguras. Desculpe o desabafo.
Constate-se o “desabafo”, a confissão e a inclusão, com segurança, deste cronista no rol dos que lá um dia resolvem “repartir” suas “amarguras” com o leitor. E é aí que acontece a cumplicidade, terminando por viciar, porque criamos o hábito de ler “o que diz hoje” o nosso amigo: a pessoa abre o jornal e vai direto procurar aquele canto onde sabe que encontra outro ritmo verbal, outro ritmo de pensamento diferentemente do restante do jornal.
No século que consagrou a crônica, o ganho foi da literatura, enriquecida com o texto mais verdadeiro: o texto que traz o “eu” que fala por todos. Sim, porque a crônica tem um “eu” muito rico, pois se poético quiser sê-lo, pode; se meramente narrativo de um caso esdrúxulo, idem; enfim, se ali se coloca, diz por todo um grupo de opinião; ademais de tudo isto, o “eu” do cronista está livre das amarras que a qualquer outro gênero são impostas em nome da arte. Reunindo todos esses “eus” no seu “eu” de cronista, José Saramago desfila pelo gênero com beleza e poeticidade, com mão firme do prosador que é e com o tom de grande conversador que a crônica requer.
Ampla como gênero, na hora de passar do jornal para o livro, são as características literárias de cada texto que contam pontos para a escolha da seleção. Independente das circunstâncias em que foram escritas, as crônicas ficam submetidas a um crivo, onde não importa a carga brilhante de humor e ironia frente às colocações do autor porque o que ressalta é o aspecto literário.
No total, o cronista português, motivo desse texto, transforma os fatos e os sentimentos do cotidiano em situações e sensações que merecem “não morrer” com o jornal do dia, entrando, assim, para fazer parte do que é perenal, ou, por outra, fazendo literatura."

[Nota do JP: Este ensaio foi escrito 1 anos antes do Nobel!]

José Saramago recorda Ann Nixon Cooper, citada por Barack Obama no discurso de vitória (06/11/2008)

Aqui link para consulta e pesquisa, 
em http://caderno.josesaramago.org/10042.html

"106 anos"
"Essa mulher de cento e seis anos, Ann Nixon Cooper, que Obama citou no seu primeiro discurso como presidente eleito dos Estados Unidos, talvez venha a ocupar um lugar na galeria das personagens literárias favoritas dos leitores norte-americanos, ao lado daquela outra que, viajando num auto-carro, se recusou a levantar-se para dar o lugar a um branco. Não se tem escrito muito sobre o heroísmo das mulheres. Entre o que Obama nos contou sobre Anne Nixon Cooper não havia actos heróicos, salvo os do viver quotidiano, mas as lições do silêncio podem não ser menos poderosas que as da palavra. Cento e seis anos a ver passar o mundo, com as suas convulsões, os seus logros e os seus fracassos, a falta de piedade ou a alegria de estar vivo, apesar de tudo. Na noite passada essa mulher viu a imagem de um dos seus em mil cartazes e compreendeu, não podia deixar de compreendê-lo, que algo novo estava acontecendo. Ou então guardou simplesmente no coração a imagem repetida, à espera de que a sua alegria recebesse justificação e confirmação. Os velhos têm destas coisas, de repente abandonam os lugares-comuns e avançam contra a corrente, fazendo perguntas impertinentes e mantendo silêncios obstinados que arrefecem a festa. Ann Nixon Cooper sofreu escravidões várias, por negra, por mulher, por pobre. Viveu submetida, as leis teriam mudado no exterior, mas não nos seus diversos medos, porque olhava à sua volta e via mulheres maltratadas, usadas, humilhadas, assassinadas, sempre por homens. Via que cobravam menos que eles pelos mesmos trabalhos, que tinham de assumir responsabilidades domésticas que iam ficar na sombra, apesar de necessárias, via como lhes travavam os passos decididos, e não obstante continuam a caminhar, ou não se levantando num autocarro, contemo-lo uma vez mais, como aquela outra mulher negra, Rose Banks, que fez história, também

Cento e seis anos a ver passar o mundo. Talvez o veja bonito, como a minha avó, pouco antes de morrer, velha e formosa, pobre. Talvez a mulher de quem Obama nos falou ontem sentisse a serenidade da alegria perfeita, talvez o saibamos um dia. Entretanto felicitemos o presidente eleito por tê-la tirado da sua casa, por ter-lhe prestado uma homenagem que ela provavelmente não necessitaria, mas nós, sim. À medida que Obama ia falando de Ann Nixon Copper, percebemos que a cada palavra o exemplo nos tornava melhores, mais humanos, à beira de uma fraternidade total. De nós depende fazer durar este sentimento."

6 de Novembro de 2008

em "O Caderno"
Caminho, 2.ª edição

"This election had many firsts and many stories that will be told for generations. But one that's on my mind tonight's about a woman who cast her ballot in Atlanta. She's a lot like the millions of others who stood in line to make their voice heard in this election except for one thing: Ann Nixon Cooper is 106 years old."
Barack Obama, excerto do discurso de vitória (06/11/2008)



Informação biográfica, via Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/Ann_Nixon_Cooper
"Ann Louise Nixon Cooper (January 9, 1902 – December 21, 2009) was a centenarian mentioned in United States President-elect Barack Obama's November 2008 election speech as a representative of the change in status African Americans had undergone during the past century and more in America. Before that, she was a noted member of the Atlanta African-American community and an activist for civil rights.
Cooper was born in Shelbyville, Tennessee, on January 9, 1902, and raised in Nashville. She moved to Atlanta, Georgia, in her early twenties with her husband, Albert Berry Cooper, a dentist, and they had four children together.[2] During that time, she served more than fifty years in public work on the board of Gate City Nursery Association and also helped found the Girls Club for African American Youth. Because there were no integrated Boy Scout troops in 1930's Atlanta, she wrote to the Boy Scouts in New York for help in starting Troop 95, Atlanta's first Boy Scout troop for African Americans.[4] When her husband died, Martin Luther King, Jr. sent Cooper a telegram; she also met with Coretta Scott King and saved photographs of the occasion.[5] Cooper first registered to vote on September 1, 1941. Though she was friends with elite black Atlantans like W. E. B. Du Bois, John Hope Franklin and Benjamin Mays, she didn't exercise her right to vote for years, because of her status as a black woman in a segregated and sexist society.
During the 1970s, she served as a tutor to non-readers at Ebenezer Baptist Church. She also served on the Friends of the Library Board, serving at one time as vice president of the board. In 1980 she received a Community Service Award from Channel 11 for being one of the organizers of the black Cub Scouts and serving as the first den mother for four years.
She was also awarded the Annie L. McPheeters Medallion for community service from the Auburn Avenue Research Library on African American Culture and History in 2002."